Porque é que a interseccionalidade não pode esperar – Kimberlé Crenshaw


Traduzido por:
Santiago D’Almeida Ferreira, co-diretor da Ação pela Identidade

Texto original em inglês para o The Washington Post pode ser econtrado aqui: Why intersectionality can’t wait

Kimberlé Crenshaw é a diretora executiva do African American Policy Forum e professora de Direito na Universidade Columbia e na Universidade da Califórnia, Los Angeles.

Por Kimberlé Crenshaw,

A interseccionalidade já era uma realidade antes de se tornar num termo.

Hoje em dia, quase três décadas depois de eu dar um nome ao conceito (Artigo Original – Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence Against Women of Color), este termo parece estar em todo o lado. Mas se as mulheres e raparigas de cor continuarem a ser postas de lado, alguma coisa essencial para o entendimento da interseccionalidade se perdeu.
Em 1976, Emma DeGraffenreid e outras mulheres negras processaram a General Motors por discriminação, reclamando que a empresa segregava a sua força de trabalho através da raça e género: os Negros faziam um tipo de trabalho e os Brancos faziam outro. Segundo as experiências das pessoas queixosas, as mulheres estavam à vontade para concorrer apenas a alguns trabalhos, enquanto homens eram preferíveis para outros.
Isto foi sem dúvida um problema por si só, mas para as mulheres negras as consequências estavam agravadas. Como se vê, os trabalhos dos negros eram trabalhos de homens negros, e os trabalhos para mulheres eram só para pessoas brancas. Assim, enquanto uma pessoa negra que se candidate poderá ser contratada para trabalhar no chão de uma fábrica se for homem; se ela for uma mulher negra não vai ser considerada. Similarmente, uma mulher pode vir a ser contratada como secretária se ela for branca, mas não terá hipótese se ela for negra. Nem trabalhos para negros nem trabalhos para mulheres eram apropriados para mulheres negras, visto que elas não eram nem homens nem brancas. Isto não é claramente uma discriminação, mesmo que alguns negros e mulheres fossem contratadas?
Infelizmente para DeGraffenreid e outros milhares de mulheres negras, o tribunal indeferiu as suas reinvidicações. Qual o porquê? O tribunal acreditava que mulheres negras não deveriam ter permissão para juntar raça e género numa só reinvidicação. Elas não conseguiam comprovar que o que lhes havia acontecido era o que tinha acontecido precisamente às mulheres brancas e aos homens negros, a discriminação que aquelas mulheres negras sofreram caiu no vazio.
Foi a pensar na grande lacuna que poderia acontecer dentro da estrutura complexa da legislação anti-discriminação que o termo “interseccionalidade” nasceu. Eu enquanto jovem professora de Direito, queria definir esta profunda invisibilidade na lei. A discriminação racial e de género sobrepôs-se não só no local de trabalho mas também noutros campos da vida; estas dificuldades, igualmente significativas, eram quase inexistentes nas bandeiras feministas e anti-racistas. Na altura, a interseccionalidade, foi a minha tentativa para o activismo feminista, anti-racista e a legislação anti-discriminação fazerem o que eu achava que deveriam fazer – realçar os vários caminhos que a opressão racial e de género impõe, de forma a que esses problemas fossem mais fáceis de discutir e de se entender.

[Interseccionalidade: primária – Inglês]

A interseccionalidade é uma sensibilidade analítica, uma forma de pensar sobre indentidade e a sua relação com o poder. Originalmente criada em nome das mulheres negras, o termo trouxe à luz do dia a invisibilidade de vários elementos dentro de grupos, que apesar de reclamarem essas pessoas como seus membros, regularmente falham na sua representação. As supressões dentro da interseccionalidade não são exclusivas das mulheres negras. Pessoas de cor dentro do movimento LGBTQ; raparigas de cor na luta contra a via escola-prisão; mulheres dentro dos movimentos imigrantes; mulheres trans dentro dos movimentos feministas; e pessoas com deficiências a debater o abuso por parte da polícia – todas enfrentam vulnerabilidades que reflectem intersecções de racismo, sexismo, opressão de classes, transfobia, capaticismo, entre outras. A interseccionalidade deu a vários activistas uma forma de apropriar as suas próprias circunstâncias e lutar pela sua visibilidade e inclusão.

A interseccionalidade tem sido o estandarte que tem feito inúmeras exigências pela inclusão, ainda assim um termo isolado não pode fazer mais do que as pessoas que têm o poder de exigir. E, sem grandes surpresas, a interseccionalidade tem gerado a sua quota de debates e controvérsias.

Os conservadores têm pintado o quadro de que quem põe em prática a interseccionalidade são pessoas obcecadas por “politicas de identidade”. Sem dúvida que, como o caso de DeGraffenreid mostra, a interseccionalidade não é sobre identidades, mas sim sobre instituições que usam a identidade como exclusão e privilégio. Quanto mais entendermos como as identidades e o poder trabalham em conjunto dum contexto para o outro, menos os nossos movimentos para a mudança irão se fraturar.

Outras pessoas acusam a interseccionalidade como sendo demasiado teórica, do tipo: “muita conversa e pouca ação”. A isso eu respondo que nós temos vindo a “falar” sobre igualdade racial desde a escravatura e ainda assim não estamos nem perto de a concretizar.
Ao invés de culparmos as vozes que enfatizam os problemas, nós temos que analisar as estruturas de poder que com tanto sucesso resistem à mudança.

[Aqui está a razão da Protecção Equalitária não estar a proteger todis igualmente – Inglês]

Algumas pessoas têm discutido que um entendimento interseccional cria uma atmosfera de bullying e de “verificação de privilégios”. Reconhecer o privilégio é díficil – particularmente para aqueles que também passaram por discriminação e privilégio. Enquanto mulheres brancas e homens de cor também passam por discriminação, demasiadas vezes as suas experiências são o ponto de partida para todas as conversas sobre discriminação. Ser a frente e o centro das conversas sobre racismo ou sexismo é um privilégio tão complicado que muitas vezes é díficil de o ver.

Apesar da recente convocatória do presidente Obama para se apoiar as mulheres negras ser aconselhável, levar avante o trabalho interseccional requer ações concretas para abordar as barreiras da igualdade que mulheres e raparigas de cor na sociedade norte americana enfrentam.

A interseccionalidade de forma isolada não consegue trazer corpos invisíveis para a vista. Meras palavras não mudam a forma como algumas pessoas – os membros menos visíveis do eleitorado político – têm de continuar à espera que os líderes, decisores políticos e outros vejam as suas dificuldades. No contexto de abordar as disparidades raciais que continuam a infestar a nossa nação, activistas e grupos de interesse devem aumentar a sensibilização sobre as dimensões interseccionais da injustiça racial, que deve ser tratada de forma a melhorar as vidas de todos os jovens de cor.

É por isso que nós continuamos o trabalho com a campanha #WhyWeCantWait, apelando para abordagens inclusivas e abrangentes à justiça racial. É por isso que “Say Her Name” continua a chamar à atenção para o fato de que mulheres também estão em risco de perder as suas vidas na mão das forças policiais. E é por isso que dezenas de pessoas concordaram que a tragédia em Charleston, S.C, demonstra a necessidade de sustentar a visão de que a justiça social reconhece as formas como o racismo, o sexismo e outras inequidades trabalham em conjunto para nos debilitar a todos/as. Nós não nos podemos dar ao luxo de construir movimentos sociais que não sejam interseccionais nem podemos acreditar que estamos a trabalhar de forma interseccional só por proferir palavras.

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